Decisão do STF muda licença-maternidade a casais homoafetivos; entenda

Decisão histórica garante período de licença-maternidade também à mãe não gestante, em caso de casais formados por mulheres. Especialistas comentam

O nascimento de uma criança é marcado por diversos desafios, principalmente nos primeiros meses de vida. Neste período, o recém-nascido demanda cuidado e atenção redobrados de seus responsáveis. A importância é tamanha que é previsto por lei um período de licença após o parto, para que um tempo de qualidade seja dedicado ao cuidado da criança e à recuperação da gestante — benefício que é conhecido como “licença-maternidade”.

Entretanto, a forma como esse direito é concedido ainda segue uma lógica heteronormativa de concepção de família.  No dia 13 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a mãe não-gestante de casais homoafetivos  também pode ter direito à licença-maternidade. A decisão tomou como partida o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1211446, com Repercussão Geral.

O caso

O julgamento que deu início a discussão aconteceu em 2017, na cidade de São Bernardo do Campo (SP). Na época, a médica Tatiana Maria Pereira Fernandes e sua esposa, Valdete da Silva Pereira,  entraram com um pedido para requerer a licença-maternidade à mãe não-gestante.

O iG Queer teve acesso aos autos do julgamento. Neles, é explicado que Tatiana e Valdete possuíam uma união estável desde 2007 e estavam fazendo um tratamento de fertilização in vitro. Os óvulos da médica foram utilizados para a fertilização, mas foi Valdete quem gestacionou a criança. A filha do casal nasceu em outubro de 2017.

Entretanto, a ocupação profissional de Valdete a impedia de sair de licença-maternidade, uma vez que ela trabalhava como autônoma ministrando aulas de tênis, e sem vínculos com o  Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Com isso, Tatiana, que é servidora pública no município, deu entrada no pedido de licença-maternidade para que pudesse cuidar da bebê.

O pedido da médica foi indeferido pelo município, com a justificativa de que havia uma “inexistência de amparo legal”. Como medida emergencial, uma vez que Valdete necessitava voltar ao trabalho, a servidora optou por tirar férias e a licença-prêmio. Tatiana, então, começou uma batalha judicial para a concessão do benefício, o que culminou na decisão do STF.

A decisão

Segundo o STF, foi decidido com unanimidade que “a mãe, servidora pública ou trabalhadora do setor privado, não gestante em união homoafetiva, tem direito à licença-maternidade”. O relator,  ministro Luiz Fux , entendeu ainda que “caso a companheira [da pessoa que realizou o pedido judicial] tenha utilizado o benefício, [a solicitante] fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade”.

A decisão fica expressa no tema 1.072 da Repercussão Geral, e defende que o benefício trata-se de uma “proteção à maternidade e à infância”, podendo assim garantir um convívio integral e o cuidado do recém-nascido, independentemente da filiação.

Licença-natalidade

O período de licença maternidade e paternidade varia conforme as diretrizes municipais. Em suma, o período de afastamento à gestora é dado, ao menos, por 120 dias. À outra parte do casal, o período é menor, não chegando a um mês de afastamento — lógica que segue uma estrutura heteronormativa que entende que a mulher é a responsável pelos cuidados da criança, e portanto precisa de um tempo maior de licença.

A advogada e jurista fundadora do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias, explica que o entendimento de quanto tempo cada licença deve durar remonta a uma ideia arcaica de sociedade e é um fator prejudicial para a criança.

“Eles [o STF] não concederam como eu acho que deveria ter sido concedido a licença: que era para as duas”, comenta ela sobre o caso de Tatiana e Valdete. “É algo que eu sustento há muito tempo, para que não falemos em ‘licença-maternidade’ ou ‘paternidade’, mas sim em ‘licença-natalidade’. Isso porque é um benefício concedido à criança, para que tenha alguém que cuide dela, não interessa se é o pai ou é a mãe.”

O relator do caso, o ministro Luis Fux, teve um entendimento parecido com a jurista e também externou sua dúvida sobre o não concedimento do benefício de forma igualitária às duas mães.

“A Constituição estabeleceu uma licença maior para a mãe, vislumbrando a condição de mulher. Se as duas são mulheres, as duas são mães. É o Supremo que vai dizer que uma pode [ter o tempo de licença-maternidade] e a outra está equiparando a licença-paternidade? Estamos replicando o modelo tradicional, homem e mulher.”

Segundo Maria Berenice, há precedentes em que a Justiça optou em ceder a licença de quatro meses às duas mães — período estabelecido atualmente para as licenças-maternidade. Contudo, a decisão do Supremo, com Repercussão Geral, implica em uma padronização nesses casos, o que vai trazer uma nova diretriz para julgamentos deste tipo, ou seja, não concedendo a licença de forma igualitária às duas mães.

A advogada atuante em Direito Previdenciário e Trabalhista, Vanessa Atui, afirma que os julgadores, muitas vezes, “chegam ao Tribunal com suas próprias experiências de vida, com suas vivências, do que é certo e errado, do que é moral e imoral, de acordo com suas criações, culturas e religiões, imprimindo nas decisões um preconceito velado”, — o que, na visão da especialista, se torna um provável problema no julgamento.

“Quando houve a definição legal das licenças, paternidade e maternidade, ainda não se consideravam igualitários os casais homoafetivos perante o Judiciário. Considerava-se, ainda, um conceito de pai como provedor meramente financeiro, e de mãe como única responsável pelos cuidados dos filhos, um padrão que já não se aplica à maioria dos casais heterossexuais. Por esta razão, a licença maternidade tem um prazo tão superior”, diz a advogada.

Ela continua: “Na prática, esta definição legal pode não beneficiar nenhum tipo de família, pois considera posições de gênero muito ultrapassadas na cultura atual, e afeta a liberdade de planejamento familiar garantida pela Constituição Federal.”

Salário-maternidade

Além da licença, a médica Tatiana Fernandes também entrou com um pedido de recebimento do salário-maternidade . A advogada Vanessa Atui explica que o benefício é pago “devido à pessoa que se afasta de sua atividade, por motivo de nascimento de filho, aborto não criminoso, adoção ou guarda judicial para fins de adoção, instituído com vistas à proteção da maternidade.”

A especialista continua: “A solicitação deve ser feita na empresa ou no INSS, sendo o deferimento condicionado ao cumprimento dos requisitos de gestação ou filiação, qualidade de segurado e carência. Uma vez deferido, pode ter duração de 14 dias no caso de aborto, 120 dias em decorrência do nascimento de filho ou adoção, e 180 dias às mães de crianças nascidas até 31 de dezembro de 2019 acometidas por sequelas neurológicas decorrentes da Síndrome Congênita do Zika Vírus.”

O pedido do salário foi inicialmente indeferido pelo INSS, mas posteriormente deferido pelo juiz Fernando Henrique Correa Custódio, do Juizado Especial Federal da 3ª Região, que concedeu o benefício em 2018 à médica. Na época, o INSS foi obrigado a pagar todos os valores atrasados, com o reajuste da inflação, uma vez que o caso foi solucionado quase um ano após o início do processo.

Tanto o salário-maternidade quanto a licença são benefícios concedidos, na teoria, de forma simples: com a prova da parentalidade, qualidade de segurado e carência.

Bianca Carelli, advogada especialista em Direito Parental, explica que esse “reconhecimento sempre foi automático”, mas que a atual “questão que se coloca é sempre para as mães não-gestantes e, eventualmente, para os casos de dupla paternidade, no qual um dos pais busque a licença-maternidade”.

“Em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homoafetiva. Quanto à homoparentalidade, o Código Civil garantiu a presunção de parentalidade no caso de filhos advindos na constância do casamento ou da união estável. No entanto, o Código Civil faz referência às figuras de marido e mulher e, portanto, não contempla os casais homoafetivos. Ainda temos lacunas legais que dizem respeito ao reconhecimento da homoparentalidade”, completa a advogada.

A especialista ressalta ainda que essas lacunas não significam que o recebimento deste direito esteja vetado por completo, mas sim que precisará “passar pelo caminho da judicialização”. A jurista Maria Berenice contribui com a fala de Bianca e afirma que esse processo de apagamento da homoparentalidade da criança resulta em uma série de problemas. “A criança fica sem identidade, sem direitos”, diz a especialista.

Ela continua: “Esses dias eu encontrei um amigo meu que disse assim: ‘Estou de licença maternidade’. A criança já tinha dois anos de tanto tempo que levou o processo. Então se morre o pai, por exemplo, e ela [a criança] não tem vínculo ainda, ela não tem direito à herança, não tem direito à pensão, não tem direito à nada. E isso vale para plano de saúde, convívio com pais separados… Isso não tem a ver com biologismo, tem a ver com esse planejamento familiar.”

A advogada Vanessa Atui acrescenta ao explicar que esse direito ultrapassa os papéis de gênero e sexualidade, sendo algo recorrível em casos de deferimento.

“Até o homem pode requerer à licença-maternidade e ao salário-maternidade no caso de falecimento da genitora [no parto, por exemplo] ou no caso de adoção, bem como se afastar do trabalho para os cuidados do filho recém-nascido ou para adaptação dos cuidados da criança adotada. É lei.”

E para o futuro?

É um consenso entre as especialistas que o futuro sobre o tema ainda é incerto. A decisão do STF não significa um pontal final na discussão, apenas um primeiro passo para facilitar a concessão do benefício.

Ao mesmo tempo que na Câmara dos Deputados há um Projeto de Lei, de autoria da deputada Sâmia Bonfim, o PL 1974/2021, que prevê a alteração da licença-maternidade e paternidade para a “licença-parentalidade”, — um conceito parecido com o defendido por Maria Berenice — e que unificaria em 180 dias uma licença para o casal.

A advogada Bianca Carelli diz que ainda que possamos ser otimistas quanto ao assunto, “temos um Supremo Tribunal Federal que tem acolhido a possibilidade de as empresas contratarem trabalhadores sem reconhecimento de nenhum direito trabalhista.”

Ela continua: “Se esse cenário se mantiver, é possível que cada vez mais empresas contratem seus colaboradores em formatos mais precários e sem reconhecimento de direitos trabalhistas e previdenciários. Sendo assim, todo esse avanço poderá estar em xeque no que diz respeito a licença”.

Vanessa complementa a colega de profissão e ressalta: “As modificações em lei não ocorrem com facilidade e em curto período de tempo. O INSS continuará a negar os pedidos e o Judiciário ficará sobrecarregado com as mesmas demandas. Os segurados não conseguirão os direitos que lhe são garantidos com facilidade”.

Embora diante de um cenário de dificuldade, a especialista indica que os advogados devam continuar provocando a Suprema Corte para que novas teses sejam desenvolvidas e para que uma segurança jurídica surja de forma efetiva.